09 agosto 2008

ME CONTARAM NO FINAL DE SEMANA PASSADO, NUM CURAL (uma confissão)

Eu sou um boi. Um boi mesmo - o primo do touro, o marido da vaca, o que você preferir. E o que eu vou contar não tem graça nenhuma. Na verdade, meu único motivo de inspiração é poder compartilhar com vocês uma dúvida de lingüística etimológica idiota que não sai da minha cabeça. Aconteceu quando eu estava sozinho, migrando. Passei, uma vez, mais ou menos umas três semanas peregrinando pelos pastos do sudeste, bebendo água de rio sujo, comendo grama com lama e dormindo sempre em pé e sempre mal. Essa história pode parecer mentira, mas eu vi, ninguém me contou.

Quando você já está andando sozinho há mais de sete dias você fica doido. Doido e exausto. Não dava pra saber o que era verdade ou não, a não ser que fosse claro demais. Dessa vez não era ilusão, por que era claro demais - uma porteira, no meio do pasto cinza. Quando o pasto é cinza geralmente não tem nada, mas tinha. Uma construção longa e gorda foi crescendo conforme eu me aproximava, e junto aumentava o ruído de bois mugindo (que, na hora eu pensei, quebrava o clima de solidão). Sei lá quantas vacas estavam lá dentro. Cara de matadouro. Aquilo era um matadouro. Que porra é essa?

Fui com calma. Me aproximei de um basculante mais alto do que eu, que era a única janela visível daquele bloco maluco de concreto, e dei uma olhadinha difícil lá pra dentro. Não vi nada. Será que tinha outra janela? Não dava pra saber, era enorme. Segui o muro por dois minutos e notavelmente os gritos aumentaram. Agora dava pra saber que os ruídos que eu tinha escutado antes eram nítidos gritos de humanos do sudeste. E depois de mais dois minutos tensos de percurso eu reparei uma janela - que não era um basculante. Deu pra ver tudo!

Foi chato. Acho que eu não queria ter passado por isso, a cena mais desagradável que eu já vi na minha vida. Era realmente um matadouro. E os gritos eram realmente de humanos. Humanos estavam pendurados por correntes, um por um, em minúsculas baias de concreto ao longo de um galpão enorme. Eram muitos, centenas. Os bois circulavam em silêncio entre os homens e mulheres pendurados. Estavam todos muito gordos e com as pernas fininhas. Dizem que eles ficam anos nessas posições pra poder engordar bastante. Passei também pela situação de ver uma gordinha ser fulminada por um dos bois, um boi com chifres enormes. Mas eu não vou contar. Fiquei pensando, será que eles comem essas pessoas? E se não comem, pra quem vendem tanta carne?

Nesse tempo todo ninguém me viu. Fiquei assistindo aquela cena bizarra e pensando se essas pessoas seriam servidas em alguma mesa de jantar. Cheguei à conclusão de que esses bois deveriam ser antropófagos. Não seria isso? Quem come carne humana é antropófago. Ou antropofagia é a mesma coisa que canibalismo? Porque canibais aqueles bois só seriam se estivessem comendo bois. Essa questão não me abandona desde então. Eu, naquela circunstância, senti a tentação de tirar a minha dúvida com algum daqueles humanos, mas nem sei se eles saberiam me responder, não faço idéia do grau de alfabetização daquela gente. Quem é antropófago? É aquele que come carne de gente ou gente que come carne de gente? E se quem está comendo a carne for um poodle? O poodle com certeza não é canibal, disso eu sei, mas eu queria saber se ele é antropófago! Bom, continuei caminhando sozinho. E foda-se essa porra de língua, eu nem falo português, não me serve pra nada. Que loucura...